Desde o lançamento dos 13 episódios, de forma simultânea, em 10 de abril, na web, muito já se falou sobre “Demolidor”, seriado coproduzido entre Netflix e Marvel Studios. Todos os elogios são mais que merecidos: uma história bem narrada, com personagens interessantes, dos quais entendemos suas motivações, sem contar a ambientação soturna, certeira, a ação crua e o elenco bem escalado. E os fãs do personagem ainda podem celebrar a fidelidade ao material original dos quadrinhos.
Mas também é preciso entender “Demolidor” como produto dentro de um projeto bem maior: trata-se de uma série que, diferente da televisão, leva ao espectador tudo de uma vez só. Não é preciso esperar a próxima semana. Quem quiser, pode ver todos os episódios em um dia. Sacada que a Netflix já teve há algum tempo e acertou em cheio com “House of Cards”, por exemplo.
Diferente do excelente e premiado programa estrelado por Kevin Spacey, “Demolidor” está inserido em um universo compartilhado que envolve filmes de cinema e uma série televisiva (“Agentes da SHIELD”). Ou seja, além de criar uma trama envolvente, é preciso planejá-la como algo contínuo e que esteja de acordo com o que foi narrado na telinha e nas telonas. Não há a preocupação em bater o concorrente na audiência do dia ou da semana. Assim os roteiristas conseguem se livrar de certas amarras da tevê e o resultado é superior ao o que estamos acostumados a ver.
“Arrow”, “Flash” (ambas do canal pago CW) e a própria “Agentes da SHIELD” possuem propostas estéticas inerentes ao veículo em que são exibidas: mais planos fechados, cenas de ação de acordo com o orçamento, ainda que a última volta e meia traga personagens coadjuvantes do universo cinematográfico da Marvel. “Demolidor” não. Precisa soar atrativa em telas de computador, smartphones, televisão, telão, etc. Onde o espectador desejar ou puder assisti-la - vários sites já trocaram a categoria "TV" por simplesmente "séries". E funciona bem em todas essas mídias.E funciona bem em todas essas mídias.
Já se especula até a participação do herói em futuros filmes dos Vingadores. Dele e das próximas séries da Netflix baseadas em personagens da Marvel: Jessica Jones, Punho de Ferro e Luke Cage. Os quatro formam a equipe Os Defensores e se reunirão num último seriado de oito episódios. Enfim, breve explicação para situar o leitor.
“Demolidor” é um case a ser estudado. Bateu recordes de acessos. E downloads ilegais. Eis uma questão que a Netflix deverá enfrentar. Ou não. Ao disponibilizar tudo junto, presenteia o espectador. E a pirataria. Tema que renderia uma discussão à parte.
Todos os episódios do programa podem ser encarados como um filme de 13 horas. E que filme! Há uma linha tênue entre o bem e o mal que os personagens caminham ao longo da trama. Matt Murdoch, o advogado que na infância ficou cego, mas teve seus demais sentidos aguçados e perdeu o pai assassinado por se recusar a entregar uma luta de boxe, defende os habitantes de seu bairro, a Cozinha do Inferno (em Nova York) dos bandidos. Porém, precisa entender o limite para não se tornar igual à corja que enfrenta. Karen Page busca uma paz interior, mas carrega culpa e suja as mãos de sangue. Wilson Fisk sofreu com o pai abusivo e sonha com uma cidade melhor, ainda que seus meios para realizar seu objetivo não sejam os mais nobres. Pelo contrário. Mesmo os coadjuvantes possuem momentos relevantes.
Para que tantos personagens funcionassem bem, era preciso acertar no elenco. Fato consumado pelos produtores.
O britânico Charlie Cox entrega ao espectador um Matt Murdoch mais intenso que o de Ben Affleck no longa de 2003.
A nova-iorquina Deborah Ann Woll (“True Blood”) encarna à perfeição uma Karen Page que se deixa consumir pelos traumas e, por mais que busque o bem, parece estar sempre a um passo de meter os pés pelas mãos – quem leu as HQs do Demolidor entenderá. Quando Karen busca o que é certo, acreditamos em sua força de vontade e podemos enxergar muito da Deborah da vida real, que faz campanhas em busca da cura para a doença rara do namorado, a choroideremia, que deixa a pessoa cega aos poucos.
Elden Henson, que alguns poderão se lembrar como o amigo de Ashton Kutcher em “Efeito Borboleta” (2003), é a figura perfeita para viver Foggy Nelson, o melhor amigo e sócio do protagonista na empresa de advocacia.
E há Vincent D’Onofrio, talvez o maior acerto do cast: no início de carreira o hoje veterano astro já havia vivido alguém que sofria nas mãos dos outros e virava um assassino no espetacular “Nascido Para Matar”, do mestre Stanley Kubrick. Careca, forte, bem vestido, dono de uma fala mansa e grave na maior parte do tempo, seu Wilson Fisk é um sujeito o qual podemos compreender, ainda que discordemos de suas escolhas. Alguém ameaçador que pode ter um acesso de fúria a qualquer momento.
O roteiro bem dosado mescla o drama de cada um e de uma sociedade prestes a virar o caos, crítica à corrupção na política e na polícia, à decadência do jornalismo, momentos de ironia e irreverência (há uma fala que lembra bastante “Rocky Balboa”, sobre a importância de aguentar apanhar...), tem as referências aos filmes do cinema e não esquece as cenas de ação. Uma delas, num corredor, é digna de um conhecido plano-sequência do coreano “Oldboy” (2003). Já as correrias por telhados e escadas lembram o parkour mostrado nas franquias “Bourne” e “B13 – 13º Distrito” (da França).
Com tantas escolhas corretas, “Demolidor”, que já tem sua segunda temporada confirmada, pode ser encarado – e aí haverá sempre a polêmica discussão entre os fãs – como o melhor produto concebido pelo Marvel Studios até agora.
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